sexta-feira, 25 de abril de 2008

Duas bandeiras

Aqui em Adelaide tem uma praça que me irrita.
Nela há duas bandeiras - uma da Austrália, outra da comunidade aborígene.
Eu podia parar por aqui e não dizer mais nada.
Mas eu vou me atrever a jogar álcool (líquido, não o de gel) nessa fogueira insandecida.
Primeiro, sugiro ironicamente pensar no que se daria, se isso fosse feito em qualquer praça do Brasil. Pense no pirulito da Praça 7, rodeado por não sei quantas centenas de bandeiras, além da brasileira. Talvez seria algo mais ou menos como:
Representando as descendências - uma para os botocudos, outra para os negros de Angola, outra para os brancos portugueses, outra para os branquíssimos alemães, outra para os os turcos meio beges... Até que alguém diria:
- Pára! Vamos organizar!
-Tá. Idiomas nativos?
- Não, talvez cor de pele mesmo...
- Sim, (lembram-se daqueles questionários ridículos, tipo: "Assinale sua cor de pele"?) começamos pelo brancos, seguindo pelo degradê dos amarelos, depois os pés-na-cozinha, depois os...
- Não! - alguém grita
- Começa pelo marrom-índio, já que eles já estavam aqui quando tudo começou.
- Mas qual tribo? - alguém pergunta
- Não sei, talvez em sentido horário, começando geograficamente pelas tribos do Norte, depois as...
- Não! - outro grita - Em ordem alfabética é melhor, porque aí num discrimina!
- Mas onde é que vamos pôr os caboclos?
...
Onde eu quero chegar com essa sandice... Sobre o quanto é repugnante dividir assim uma nação.
No meu país, os confeccionistas de bandeiras estariam ricos se essa idéia cretina vingasse. Isso porque - aos trancos e barrancos (uh! barrancos lamacentos), nos entendemos uma nação só, farinha do mesmo saco, grãos misturados, sortidos - ainda bem. O que não significa que sejamos muito parecidos fisica ou culturalmente, seja a cor da pele, o santo para o qual cada um reza, o jeito como cozinha o feijão. Mas estamos no mesmo saco... digo, barco, com a mesma bandeira.
Passei a ver a miscigenação, da forma como a conhecemos no Brasil, como um conceito anos-luz à frente do resto do mundo. Sim, ela dá um pé na bunda da xenofobia, do separatismo e de tudo mais que habita esse brejo perigoso. Aqui, as pessoas parecem não saber o que é isso - mistura. Porque eles não estudam isso na escola? Não, mas sim porque ela não aconteceu aqui. Em momento algum europeus e aborígenes se misturaram. Porque aqui existem - ainda - apenas duas cultura distintas e dois 'tipos físicos marcados: australianos (=descendentes diretos de europeus) e aborígenes. Não existe riqueza cultural, diversidade de costumes e crenças. Não houve filhos, religiões, vocabulário, música ou comidas que surgiram da convivência das duas culturas - porque elas não coexistiram ou conviveram a esse ponto. E eu, atrevidamente (de novo), os chamo desafortunados, porque não conhecem esse estado de graça chamado miscigenação. PS: não estou dizendo que a miscigenação ocorreu pacífica e de forma ideal no Brasil. Estou ressaltando os pontos positivos de viver num país de cultura diversificada e pouquíssimo segregada.
A grosso modo, os aborígenes foram mais exterminados do que os índios brasileiros de tal forma que os poucos (muito poucos) que restaram aqui são sustentados pela culpa do governo, em forma de programas de assistência, conhecidos como "reconciliation". Eles recebem recursos e compram comida e bebida, só. A maioria é alcoólatra, obesa e doente. Eles vagam pelas cidades em bandos, como mendigos, não conseguem se estabelecer em local algum (não porque são originalmente nômades), mas porque mal falam ou entendem o inglês e não são bem-vistos pelo "resto"da sociedade. O sentimento de mal-estar é mútuo entre eles, já pude perceber.A sobrevivência deles e de sua cultura depende dos programas de governo que mencionei, mas a forma burra como eles são concebidos aumenta a distância e acentua as diferenças. Ah, sim, mas houve allguns filhos de australianos e aborígenes. E a respeito deles o governo teve uma idéia brilhante: hoje são conhecidos como "geração perdida", que há 30 anos atrás foram arrancados à força de sua família aborígene enquanto crianças, para serem "criados adequadamente" por sua família australiana, para terem oportunidades melhores. Hoje o governo banca outro programa para encontrar suas famílias de origem e tentar curar seus traumas, porque jamais essas crianças se sentiram parte de coisa alguma...
Vi um exemplo também num hospital público, onde a triagem para emergências, no caso de aborígenes é feita num setor separado, longe da triagem "comum". Em volta da sala há várias pinturas aborígenes, cartazes de programas do governo direcionados a eles, etc. Mas só ali, naquele pedacinho do hospital. Sem comentários.Políticas à parte...
É estranho andar nas ruas daqui e perceber o quanto as pessoas ("não-aborígenes") se parecem umas com as outras! Parecem ser, em grande parte, da mesma família. Mesmo traços no rosto, narizes, o azul dos olhos, estatura, cor dos cabelos e pele... Porque até hoje eles não se misturaram com os "locais", o que os faz, a grosso modo, ainda serem os mesmos, geneticamente! Já pensou? E quando se vê um bando de aborígenes pelas ruas, é como enxergar outro mundo, é como predizer que as duas bandeiras (com a melhor das intenções do governo em reconhecer aquele povo também) sempre vão estar lá.
Tentei "figurar"na minha cabeça um Brasil sem samba, broa de fubá, pipoca, "Tássia da Bahia", congado, oratórios, roupa branca no reveillon, mandioca, maracatu, moda de viola... e o que me veio foi algo tão vazio, sem cor e sem sentido quanto aquelas duas bandeiras...
Nat

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