domingo, 16 de setembro de 2012

as dependências de empregada

Assisti duas vezes a "The Help"(em português: Histórias Cruzadas). Fiquei duplamente maravilhada. Primeiro com a história em si, dada a coragem da moça que culminou na publicação do bombástico livro; segundo, obviamente, com a maestria das atrizes escaladas.

Enfim, óbvio que ficou impossível não traçar paralelos com nossa realidade doméstica pós-escravista pseudo igualitária. Veja bem, não é uma questão do racismo escancarado, mas do racismo impregnado e mimetizado nas pequenas ações do nosso cotidiano, desde que a primeira escrava adentrou a primeira casa grande brasileira. Falar sobre esse racismo é incômodo a muitos de nossos compatriotas.
Fiquei perplexa ao analisar o paradoxal relacionamento que se estabeleceu entre patrões e suas escravas (vou me ater ao sexo feminino). Paralelamente à aversão européia ao negro africano, baseada em diferenças "raciais", convivia uma relação íntima e estreita de contemplação de necessidades diárias por parte delas. É absurda demais a relação. Elas eram instrumentos de conveniência que partilhavam de muito da vida doméstica da casa grande - eram amas de leite, lavavam as roupas, faziam a comida, ajudavam as senhoras a se vestir, a parir, a convalescer. 
O absurdo é esse. Essas mulheres carregavam um duplo estigma - eram segregadas por serem escravas, e, por serem escravas, eram parte imprescindível da vida de seus opressores, daqueles que as colocaram nessa condição. 

Desprezíveis mas imprescindíveis? Não é intrigante ver por esse aspecto? 
A fala de uma das personagens que me despertou esse questionamento e que me fez trazê-lo para a atualidade foi: "Separated, but equal", que justificava a construção de um banheiro à parte para as empregadas da casa, do lado de fora da mesma. A personagem ressaltava tal necessidade baseada no "fato" de que os negros possuíam doenças diferentes dos brancos, tornando necessária tal separação a fim de proteger a saúde da família. 
Taí o incômodo que me causou -  lembrar das tenebrosas "dependências de empregada". Não me venha com "é diferente", porque não é não.  Fui criada em famílias nas quais muitos se diziam não ser racistas, mas ambas impregnadas do mesmo racismo sutil a que me refiro. 
Fato. As empregadas não comem na mesa conosco, possuem banheiros separados e geralmente utilizam talheres, pratos e copos separados dos de uso da família. 
Me lembro do banheiro de empregada do apartamento antigo de classe média onde nasci: um cubículo com o chuveiro quase em cima do vaso. Pensei, claro, na persistência abominável dessas "dependências", mesmo nos projetos mais modernos de casas e aptos. Suas camas se espremem em quartinhos onde elas dividem seu sono com mantimentos e quinquilharias. Muitos "elevadores de serviço" ainda assombram prédios e ocupam espaço justificado na mentalidade de muita gente rude. 
Me lembrei, entristecida, de uma ocasião. Eu era criança e minha avó, comovida pelo calor que fritava as formiguinhas que varriam a rua em frente à casa, resolveu levar água gelada pra elas. A ajudei a levar as garrafas e carregar os copos. Elas, sedentas, beberam agradecidas toda água que levamos. Quando retornamos à cozinha, coloquei os copos na pia para lavá-los, mas fui interrompida por minha avó : "Espera aí. Antes de lavar tem que jogar uma água quente antes." Ficou na minha cabeça a cena da água fervendo saindo do bule e escaldando os copos. E nunca concordei com aquela atitude, assim como o filme me fez lembrar que nunca aceitei também o banheiro, o elevador, o quarto separado.
Não tem água quente que lave esses conceitos seculares.

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